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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Como nos tempos dos índios malvados


Há algo comum entre “Argo” e “A hora mais escura”, candidatos ao Oscar. Ambos veem muçulmanos apenas como caricatura ideologizada

Por José Gerado Couto*
22/02/2013

Quis o destino – ou a mão invisível do mercado cinematográfico – que dois fortes concorrentes ao Oscar deste ano fossem filmes que podem ser englobados no tema geral da “guerra ao terror”, mais precisamente da hostilidade recíproca entre norte-americanos e muçulmanos “radicais”, a guerra nada fria de nossa época.

Ambos são centrados em ações espetaculares capitaneadas pela CIA: em Argo, de Ben Affleck, a retirada de seis funcionários diplomáticos americanos do Irã conflagrado pela revolução islâmica de 1979; em A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, o cerco a Bin Laden e seu suposto fuzilamento à queima-roupa numa cidade paquistanesa, em 2011.
Trailer de Argo 

Três décadas separam os dois eventos, mas nos dois filmes persiste um traço comum: a total falta de interesse dos realizadores em conhecer o “outro”, em tentar, ao menos por um instante, se aproximar de seu ponto de vista, buscar compreender suas motivações. O que há é um “nós” e um “eles”, como nos velhos filmes de índios, ou de alienígenas.

Tanto em Argo como em A hora mais escura, todos os muçulmanos que aparecem são fanáticos, estúpidos, traiçoeiros e cruéis – com exceção, claro, dos que se converteram em aliados dos EUA (como o bom índio Tonto, companheiro do Zorro do faroeste).

Tudo bem. O cinema americano levou décadas para começar a tentar conhecer os índios, para passar a vê-los como pessoas e não como uma horda selvagem indistinta, para reconhecer que eles tinham direitos, carências e desejos próprios. Talvez aconteça o mesmo com o olhar lançado aos muçulmanos – e aos árabes em geral. Tomara que não demore tanto.

Heróis individuais

De resto, não há como acusar duas grandes produções norte-americanas de ser extremamente… norte-americanas. Sua visão há de ser, em linhas gerais, a predominante entre seus compatriotas. E é preciso reconhecer que nenhum dos dois filmes é deslavadamente patrioteiro a ponto de esconder as culpas ianques no cartório. No breve prólogo de contextualização histórica de Argo é dito claramente que os EUA ajudaram a derrubar um presidente nacionalista iraniano democraticamente eleito para instalar em seu lugar o corrupto e tirânico (mas pró-Ocidente) xá Reza Pahlevi. A hora mais escura, por sua vez, já começa com uma sessão de tortura de um prisioneiro muçulmano no pós-11 de setembro.

No mais, apesar do aparato mobilizado nas duas ações, são nitidamente histórias de heróis individuais: o especialista em exfiltration Tony Mendez (Ben Affleck) em Argo, a agente Maya (Jessica Chastain) em A hora mais escura. Nada mais americano.

As diferenças mais importantes entre os dois concorrentes estão justamente na linguagem cinematográfica adotada, no estilo de narração, nas referências estéticas.

Argo é, evidentemente, muito mais leve e agradável, até porque trata de uma operação baseada na astúcia, não na violência, e que teve final feliz. O que o converte em algo mais que um simples thriller é justamente a imbricação do tema da política internacional com o da indústria da comunicação e do entretenimento. Se, como formulou Von Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”, o cinema (e por extensão a indústria cultural) é a continuação da guerra por outros meios.

Ficção da ficção

Para tirar do Irã os funcionários diplomáticos americanos, a CIA engendrou um plano ousado: simular a produção de um filme canadense de ficção científica naquele país. Esse entrecho – real – serve a Affleck para brincar com Hollywood como o lugar da fabricação de mentiras. Toda essa vertente do filme – entrelaçada por uma montagem hábil à narração da crise em Washington e no Irã – é o que ele traz de mais divertido. A dupla de picaretas hollywoodianos encarnada por Alan Arkin e John Goodman é responsável pelas falas mais memoráveis, como esta: “Se você quer vender uma mentira, ponha a imprensa para vendê-la por você”. Ao que tudo indica, uma frase recorrente em Hollywood.

Tanto na linha cômica como no suspense e no melodrama familiar, a matriz assumida deArgo é o cinema narrativo clássico norte-americano, sobretudo o dos anos 1970, com sua sintaxe um tanto mais frouxa e influenciada pela televisão (e o símbolo desse declínio é o letreiro escangalhado de Hollywood na montanha).

Já a referência que Kathryn Bigelow parece querer mimetizar é a das reportagens televisivas em tempo real. A ânsia de parecer documental chega a sacrificar a inteligibilidade e até a visibilidade do que é mostrado. Na sequência crucial da invasão do bunker do suposto Bin Laden, não se enxerga praticamente nada. Faltou apostar no ilusionismo do cinema, na capacidade que temos de acreditar que uma cena está sendo iluminada só por uma vela mesmo que haja potentes holofotes e refletores no set. Enfim, se o modelo de Argo é a velha e boa Hollywood, a de A hora mais escura é a CNN.

Ideologia escondida

Duas últimas observações críticas – e quem não quiser saber o final do filme de Ben Affleck pode parar por aqui. Há em Argo uma imagem eloquente, quase um carimbo de conservadorismo americano: a do abraço entre o herói retornado e sua amada, com a bandeira das estrelas e listras tremulando ao fundo. Clint Eastwood, ele próprio republicano e conservador, usou a mesma iconografia no final de Sobre meninos e lobos, mas com dolorosa ironia. Uma boa sacada de Argo, por outro lado, é o de exibir em destaque, no final, os bonequinhos de Star Wars e outras sagas de ficção científica do filho do protagonista. A fantasia do menino e o ofício do pai fazem parte da mesma mitologia do triunfo, da mesma lógica da conquista e da expansão. Até que ponto o filme de Affleck é uma reflexão crítica sobre esse mecanismo e até que ponto se limita a reiterá-lo, talvez seja cedo para responder.

Já em A hora mais escura, o que há de mais ideológico é a conversão de escolhas políticas e éticas em questões meramente técnicas. Por exemplo: mais de uma vez se faz referência no filme à falsa alegação de que o Iraque tinha armas de destruição em massa, mas sempre como tendo sido um inocente erro técnico, quando é quase certo que o que houve foi má fé, para justificar a invasão militar do país. Ainda mais perigosa é a passagem em que a investigação sobre o paradeiro de Bin Laden parece emperrar porque não se pode mais usar métodos de interrogatório pesado (leia-se tortura). O espectador é quase induzido a lamentar que os ventos da política tenham mudado e que Obama tenha sido obrigado a frear a barbárie de seus compatriotas.

* Crítico de cinema e tradutor.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Acordo UE-EUA não é bom negócio, diz sociólogo


O anúncio de que os Estados Unidos e a União Europeia (UE) planejam fechar um acordo de livre-comércio causou impacto. Logo surgiram análises de que a parceria comercial pode ser uma tragédia para o Mercosul. Esta não é, no entanto, a opinião do sociólogo Carlos Eduardo Martins que, em entrevista ao Portal Vermelho, avalia que o acordo não terá efeitos econômicos relevantes: “unir-se à economia estadunidense não é um bom negócio”, diz.

Por Vanessa Silva

Para o ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, ainda é cedo para avaliar as consequências de tal acordo, mas observa que os países envolvidos terão dificuldade para chegar a um consenso sobre alguns pontos, como o que trata das tarifas praticadas em alguns setores.

As diferenças tarifárias são um grande entrave na opinião de Martins, mas ele pontua também a questão política: o acordo aproxima os governos europeus dos Estados Unidos. “Caso esta proposta avance e impulsione as assimetrias e as frustrações sociais, como as que se desenvolveram na União Europeia lastreada pelo euro, poderá provocar uma forte oposição interna cujos efeitos políticos certamente terão impacto significativo na geopolítica mundial do século 21”, avalia o Coordenador do laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-hegemonia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEHC-UFRJ).

Já um acordo do Mercosul com a União Europeia segue sendo complicado, na avaliação do sociólogo. Para ele, a melhor saída está nas relações sul-sul que vêm sendo priorizadas pelo governo brasileiro, com o fortalecimento da integração latino-americana, e das relações com os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Acompanhe a íntegra da entrevista concedida por e-mail:

Portal Vermelho: O acordo da União Europeia com os EUA é a grande aposta para salvar as economias em crise. Que influência este acordo terá nos países em desenvolvimento?

Carlos Eduardo Martins: Em primeiro lugar, não creio que este acordo terá efeitos econômicos importantes sobre os países desenvolvidos. As melhores estimativas falam em uma elevação em 0,5% da taxa de crescimento para a UE e 0,4% para os Estados Unidos, mas pode bem ser o contrário.

Basta ver o caso do México, que não reduziu sua taxa de pobreza com o estabelecimento do Nafta e apresenta dinamismo econômico muito inferior ao do restante da América Latina. Se tomarmos o século 21 como referência, este país cresceu a uma taxa per capita de 1,1%, enquanto os oito principais países da América Latina o fizeram em 2,1%. Articular-se à economia estadunidense não é bom negócio. E a aproximação entre as economias estadunidense e europeia pode ser a aproximação entre duas estagnações.

Há uma pesada herança neoliberal que contribui para isso. Trata-se de economias com várias convergências de políticas econômicas e de resultados: ambas praticaram políticas de altas taxas de juros na década de 1990 e continuam com essas práticas para empréstimos de longo prazo; apresentam alto nível de endividamento do setor público; baixas taxas de investimento; altos níveis de desemprego; aprofundamento da desigualdade e assimetrias internas. Ambas praticaram políticas de abertura comercial e financeira que, no caso europeu, se estabeleceu, sobretudo, através do euro como grande fundamento da integração europeia, com desastrosos resultados macroeconômicos e sociais de longo prazo.

Em segundo lugar, qualquer possibilidade de avançar em um acordo de livre-comércio entre Estados Unidos e União Européia terá que tocar no tema dos subsídios agrícolas e nas barreiras fito-sanitárias. A tarifa média do comércio entre as duas regiões é bastante baixa, de 4%. Mas os subsídios ao setor agrícola chegavam a 23% e 40% da renda agrária dos Estados Unidos e da União Europeia, respectivamente, entre 1998-2000. Há também as barreiras fito-sanitárias nos Estados Unidos aos produtos europeus e aos organismos geneticamente modificados estadunidenses na União Europeia.

Um controle dos subsídios agrícolas não necessariamente impactará favoravelmente as economias em desenvolvimento. Os subsídios agrícolas dividem-se em vários tipos como subsídios à produção interna e subsídios à exportação. Pode-se perfeitamente reduzir os subsídios que impactem o comércio entre Estados Unidos e União Europeia e redirecioná-los para os outros mercados. De qualquer forma, trata-se de uma negociação muito difícil, pois a realidade dos 27 países que compõem a União Europeia é muito distinta — há casos em que a população agrícola é mais expressiva que outros — os mecanismos de combate às assimetrias são limitados e o avanço da produtividade na União Europeia nos anos 2000 foi muito inferior ao dos Estados Unidos. Os países de maior peso relativo de população agrícola são de economia mediterrânea (Grécia, Portugal, Espanha, Itália) ou do extremo norte (Irlanda e Islândia) justamente onde a crise se fez mais forte. Uma destruição do emprego agrícola nestes países pode agravar a crise social europeia.

Finalmente, há que se considerar a dimensão política presente num acordo deste tipo, que aproxima os governos dos Estados Unidos e europeus, reforçando ações do imperialismo como as que se manifestou na Líbia, no Mali, estimulando um envolvimento maior da União Europeia e da Otan em intervenções internacionais contra governos e poderes políticos da periferia e do sul, dividindo os seus custos cada vez mais difíceis de serem suportados pelo governo estadunidense.

Caso este acordo avance e impulsione as assimetrias e as frustrações sociais, como a que se desenvolveram na União Europeia lastreada pelo euro, poderá provocar uma forte oposição interna cujos efeitos políticos certamente terão impacto significativo na geopolítica mundial do século 21.

Considera que ele possa, de alguma maneira, impactar o acordo entre a UE e o Mercosul?

Há uma tentativa de a União Europeia resolver o problema da sua crise interna buscando mercados externos. Daí a busca por impulsionar acordos comerciais com outras regiões e países. Por isso retoma o acordo bi regional entre a União europeia e o Mercosul, cujas tratativas iniciadas em 1999 foram interrompidas em 2004. Há vários contenciosos na agenda que dificultam um acordo amplo entre os blocos: a vulnerabilidade e o protecionismo do mercado agrícola europeu frente às exportações do Brasil e Argentina; a vulnerabilidade do setor industrial brasileiro e do Mercosul frente à competitividade europeia; as exigências europeias de segurança na legislação sobre investimentos em confronto com a política de nacionalizações impulsionadas por Venezuela e Argentina; as exigências europeias de tratamento nacional a empresas estrangeiras no mercado de compras governamentais ou de regras de propriedade intelectual que limitem a difusão do conhecimento.

Tudo leva a crer que os avanços possíveis diante destes contenciosos serão muito limitados. Um acordo entre Estados Unidos e União Europeia de livre-comércio poderia facilitar um acordo com o Mercosul caso encadeasse a eliminação dos subsídios agrícolas aos produtores europeus, estendendo este benefício ao Mercosul. Neste caso, poderia ser utilizado o desmonte de um dos impasses da negociação como instrumento de barganha para desmobilizar outros. Mas trata-se de um cenário muito hipotético

Os EUA firmaram o Nafta e a Aliança do Pacífico ao sul do continente, e agora este acordo com a UE em uma estratégia para fazer frente à China. Essas são também ações para golpear e fragilizar economicamente a integração latino-americana?

Sem dúvida, trata-se de proporcionar a integração via concorrência e defesa da propriedade privada. Entretanto, as experiências históricas deste tipo de integração são de um fracasso retumbante. A União Europeia vê aumentar a pobreza, a estagnação econômica e o desemprego. Os Estados Unidos também. Ambas são economias onde o Estado perdeu grande parte de sua capacidade de ação e liderança por seu endividamento com um setor privado oligopólico e rentista, que não proporciona emprego ou melhoria da condição social dos povos. Na América Latina, o México é um grande exemplo deste fracasso econômico e social promovido por sua adesão ao Nafta: desmontou parte significativa de seu setor industrial, importa metade da gasolina que consome e não constrói, desde 1979, uma refinaria. Esta ofensiva não tem base popular no continente.

Se sim, como a América Latina poderia reagir? O estreitamento das relações sul-sul seria uma resposta ainda que estas economias fiquem de fora do centro financeiro mundial?

A América Latina está em um momento econômico bastante positivo. Beneficia-se da alta dos preços das commodities, em última instância puxada pelo mercado chinês, acumula importantes reservas internacionais, e possui a maior parte de seus governos inclinados a posições progressistas do ponto de vista social.

Agora o continente deve aprofundar a presença de um Estado popular e democrático, capaz de organizar e direcionar o progresso de integração para a soberania financeira, científica, tecnológica, alimentar e o desenvolvimento do mercado interno. Deve impulsionar o Banco do Sul, aprofundando suas dimensões sociais e sua capacidade de eliminar o subdesenvolvimento e reduzir assimetrias.

Esta é uma tarefa interna onde o Brasil tem um papel chave a desenvolver. Além disso, a cooperação Sul-Sul é da maior importância pela dimensão que vem tomando a ascensão das periferias na economia mundial. Ela se manifesta de forma mais imediata no Brics, e na possibilidade de organização de um Banco de Desenvolvimento capaz de promover uma alternativa monetária ao dólar, investimentos em regiões subdesenvolvidas, cooperação científica e tecnológica para quebrar das barreiras de entrada. Tudo isto são possibilidades que para serem efetivadas requerem um alto grau de organização política em torno dos processos de integração na América Latina.
Fonte: Vermelho

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Nova edição brasileira de “O Capital” e ciclo de seminários mostram a vitalidade de Karl Marx

Retrato de Karl Marx feito com massinha pelo artista
 plástico Nobru

Reportagem de Cassiano Elek Machado publicada na Folha de S.Paulo de 22 de fevereiro de 2013.

Nos arredores de Budapeste há um parque chamado Szoborpark, o Parque das Estátuas. Criado em 1993, este museu ao ar livre abriga esculturas que perderam espaço na Hungria com o fim do regime comunista.

Além de bustos de obsoletos líderes locais, como Béla Kun, estão lá, entre estátuas de Lênin e Stálin, diversas esculturas representando a efígie barbuda de Karl Marx.

Para muitos, nada mais adequado. Com o fim dos regimes comunistas, as ideias do intelectual alemão teriam virado perfeitos objetos de museu. Para outros tantos, porém, Marx (1818-1883), o autor do “Manifesto Comunista” (obra que completou ontem 165 aninhos), está mais vivo do que nunca.

No Brasil, ao menos, as ideias do filósofo, economista, cientista social, jornalista e historiador vivem um de seus grandes momentos.

Prova concreta disso chega nas próximas semanas às livrarias nacionais. A editora Boitempo, que vem lançando todas as obras de Marx e de seu parceiro intelectual,o compatriota Friedrich Engels (1820-1895), publica agora em março o primeiro dos três volumes de “O Capital”, seu trabalho de mais fôlego.

Será apenas a segunda edição integral brasileira do ensaio, lançado originalmente em 1867. Antes disso, houve apenas uma tradução completa, feita nos anos 1960 por Reginaldo Sant’anna (além de uma edição parcial, coordenada por Paul Singer, no início dos anos 1980).

Em conjunto ao lançamento da nova edição de “O Capital”, a Boitempo e o Sesc-SP promovem, a partir de março, um ciclo de palestras e debates sobre Marx que se estenderá até maio.
“Marx – A Criação Destruidora” (veja programação completa acima) terá a participação de mais de 20 intelectuais de diversas áreas do conhecimento, incluindo convidados internacionais de renome, como o filósofo esloveno Slavoj iek, o geógrafo britânico David Harvey, que lançará, na ocasião, o livro “Para entender ‘O Capital’”, e o cientista político alemão Michael Heinrich.

O CIENTISTA POLÍTICO


Heinrich tinha 14 anos quando começou a ler Karl Marx, ainda no colégio. Hoje, aos 55, trabalha no MEGA, codinome do projeto alemão Marx-Engels-Gesamtausgabe, que vem reestabelecendo os textos e publicando em edições críticas todas as linhas já escritas pela dupla.

O professor, que virá ao país para uma palestra em 22 de março intitulada “Os Manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels”, é autor de um popular livro de apresentação chamado “Uma Introdução aos Três Volumes de ‘O Capital” (sem edição brasileira).

A menção aos “três volumes” no título de seu livro não é casual. Quais seriam as suas sugestões para entender bem o intrincado “O Capital”?, lhe questiona a Folha.

“Vou resumir todas minhas dicas em uma só”, responde. “Leia ‘O Capital’ na íntegra.”

Heinrich, que vem trabalhando em perspectiva não ortodoxa marxista (o próprio Marx se disse “não marxista” em carta para o genro Paul Lafargue, lembra ele) para recuperar o legado intelectual do autor, diz que certos livros de introdução desvirtuam os objetivos da obra.

“As três partes do livro formam uma unidade. Se você ler apenas o primeiro volume terá uma visão não só incompleta, como errada. O sentido integral, mesmo de categorias como valor e mercadoria, só se revela com o final do livro”, afirma.

É preciso, diz ele, questionar o que Marx tenta analisar de fato. “Não era o capitalismo inglês nem o capitalismo do século 19, mas sim a organização interna do modo de produção capitalista, em seu ideal médio, como Marx resume no final do volume 3.”

Nessa perspectiva, sustenta ele, a leitura do livro hoje faria muito mais sentido (e a Folha perguntou a importantes intelectuais brasileiros “por que ler Marx hoje”). “Grande parte da análise que ele faz do capitalismo se aplica muito mais ao que aconteceu no século 20 e no 21 do que ao tempo dele.”

Heinrich diz que um dos grandes enigmas para ele “é entender como o trabalho de um homem que devotou a maior parte da vida à análise do capitalismo e fez pontuais notas sobre a sociedade capitalista é considerado o responsável por um modelo social extremamente autoritário chamado ‘socialismo’”.

Testemunha da queda do Muro de Berlim, em 1989, ele assistiu o interesse por Marx na Alemanha desabar, até ganhar empuxo novamente no final dos anos 1990.

Ele defende o projeto no qual trabalha, o MEGA (também chamado de MEGA-2, para se diferenciar de iniciativa semelhante dos anos 1920) por difundir uma visão mais científica de Marx.

O TRADUTOR


É com perspectiva condizente ao discurso de Heinrich que Rubens Enderle encarou a escalada do Everest que é a tradução de “O Capital”.

Já responsável, sozinho ou em parcerias, por traduções de importantes trabalhos de Marx para a Boitempo, como “A Ideologia Alemã” e “A Guerra Civil na França”, ele atuou durante dois anos no Marx-Engels-Institut da Academia de Ciências de Berlim-Brandemburgo, responsável pelo projeto MEGA.

Apesar de estar embebido em Karl Marx há muitas primaveras, Enderle, 38, diz que “não é marxista, mas sim um marxólogo”, diz o tradutor gaúcho-mineiro-alemão.

“Isso influenciou o trabalho de tradução, pois minha preocupação como tradutor é permanecer o mais fiel possível aos textos, o que, no caso de Marx, implica se desvencilhar de chavões e vulgaridades ideológicas que se acumularam sobre sua obra ao longo de séculos.”

Enderle, atualmente vivendo em Munique, ainda não chegou ao topo da montanha. Ele está trabalhando no livro 2, que deve ser lançado no ano que vem.

Além das dificuldades tradicionais da tradução do alemão (“falta ao português palavras como ‘coisal’ ou ‘coisalmente’”), ele sublinha outras dificuldades técnicas específicas: “Há passagens em que Marx entra em detalhes sobre peças mecânicas, principalmente de relojoaria”. Um dicionário alemão de relojoaria foi de grande ajuda.

Segundo ele, o fato de a atual tradução ser a primeira baseada na edição MEGA trará mais diferenciais nos volumes 2 e 3 da obra, publicadas depois da morte de Marx.

Ivana Jinkings, diretora editorial da Boitempo, que tem extenso catálogo de marxistas, já publicou 15 obras de Marx e Engels (o campeão de vendas é “O Manifesto Comunista”, com 15 mil exemplares), diz que o volume 3 será lançado em 2015. Curadora de diversos seminários sobre Marx, incluindo o atual, ela espera bater o recorde de público desta vez. “Esperamos mais de 15 mil pessoas.”

Intelectuais brasileiros explicam por que ainda é importante ler Marx



Questionados pela Folha, quatro intelectuais brasileiros explicam as razões pelas quais os escritos do filósofo alemão Karl Marx são importantes até os dias de hoje e, por isso, ainda merecem leitura.

ROBERTO SCHWARZ, crítico literário

“Como percepção da sociedade moderna, não há nada que se compare a ‘O Capital’, ao ‘Manifesto Comunista’ e aos escritos sobre a luta de classes na França. A potência da formulação e da análise até hoje deixa boquiaberto. Dito isso, os prognósticos de Marx sobre a revolução operária não se realizaram, o que obriga a uma leitura distanciada. Outros aspectos da teoria, entretanto, ficaram de pé, mais atuais do que nunca, tais como a mercantilização da existência, a crise geral sempre pendente e a exploração do trabalho. Nossa vida intelectual seria bem mais relevante se não fechássemos os olhos para esse lado das coisas.”

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo:

“Os textos de Marx, notadamente ‘O Capital’, fazem parte do patrimônio da humanidade. Como todos os textos, estão sujeitos às modas, que, hoje em dia, se sucedem numa velocidade assombrosa. Depois da queda do Muro de Berlim, o marxismo saiu de moda, pois ficava provada de vez a inviabilidade de uma economia exclusivamente regida por um comitê central ‘obedecendo a regras racionais’, sem as informações advindas do mercado. Mas a crise por que estamos passando recoloca a questão da especificidade do modo de produção capitalista, em particular a maneira pela qual esse sistema integra o trabalho na economia. O desemprego é uma questão crucial. As novas tecnologias tendem a suprir empregos. Na outra ponta, o dinheiro como capital, isto é, riqueza que parece produzir lucros por si mesma, chega à aberração quando o capital financeiro se desloca do funcionamento da economia e opera como se a comandasse. A crise atual nos obriga a reler os pensadores da crise. Como cumprir essa tarefa? Alguns simplesmente voltam a Marx como se nesses 150 anos nada de novo tivesse acontecido. Outros alinhavam as modas em curso com os textos de Marx, apimentados com conceitos do idealismo alemão, da psicanálise, da fenomenologia heideggeriana. Creio que a melhor coisa a fazer é reler os textos com cuidado, procurando seus pressupostos e sempre lembrando que a obra de Marx ficou inacabada e sua concepção de história, adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de religiosidade.”

DELFIM NETTO, economista

“Porque Marx não é moda. É eterno!”

LEANDRO KONDER, filósofo:

“Os grandes pensadores são grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu conservadorismo. Marx é o autor mais incômodo que surgiu até hoje na filosofia. Conceitos como materialismo histórico, ideologia, alienação, comunismo e outros são imprescindíveis ao avanço do conhecimento crítico. Por isso, mais do que nunca é preciso frequentá-los.”

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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Dívida Pública Federal pode alcançar até R$ 2,24 trilhões em 2013


Enquanto isso, as políticas econômicas do governo continuam a encher as burras dos especuladores financeiros. O custo desta conta é o solapamento dos serviços públicos: Educação e saúde à frente. E dá-lhe privatização (centralização capitalista) e "parcerias público/privada". Privataria pura!!!

Por Wellton Máximo

Brasília – Depois de superar a barreira de R$ 2 trilhões em dezembro, a Dívida Pública Federal (DPF) deverá encerrar o ano numa faixa entre R$ 2,1 trilhões e R$ 2,24 trilhões. Os números foram divulgados hoje (21) pelo Tesouro Nacional, que apresentou o Plano Anual de Financiamento (PAF) da dívida pública em 2013.

De acordo com o PAF, que apresenta metas para a dívida pública para este ano, o governo pretende continuar a melhorar a composição da DPF em 2013, ampliando a fatia de títulos prefixados (com taxas de juros fixas e definidas antecipadamente) e vinculados à inflação e diminuindo a parcela corrigida por taxas flutuantes como a Selic (juros básicos da economia) e pelo câmbio.

Segundo o documento, a fatia dos títulos prefixados deverá encerrar o ano entre 41% e 45% da DPF. Atualmente, a participação está em 40%. A parcela corrigida por índices de preços deverá ficar entre 34% e 37%. Hoje, está em 33,9%.

A parcela da DPF vinculada a taxas flutuantes deverá cair de 21,7%, registrado atualmente, para uma faixa entre 14% e 19%. Já a participação da dívida corrigida pelo câmbio, considerando a dívida pública externa, deverá encerrar 2013 entre 3% e 5%. O percentual atual está em 4,4%. Os números não levam em conta as operações de compra e venda de dólares no mercado futuro pelo Banco Central, que interferem no resultado.

Em 2012, a DPF registrou a melhor composição da história. A queda da participação de títulos corrigidos por taxas flutuantes foi possível porque o governo fez duas operações de trocas de papéis que reduziram a exposição da dívida à taxa Selic.

Essas operações reduziram o risco da dívida pública, porque os títulos vinculados à Selic pressionam o endividamento do governo quando os juros sobem. Caso o Banco Central reajuste os juros básicos, a parte da dívida interna corrigida pela Selic aumenta imediatamente. A taxa de juros dos papéis prefixados é definida no momento da emissão e não varia ao longo do tempo. Desta forma, o Tesouro sabe exatamente quanto pagará de juros daqui a vários anos, quando os papéis vencerem e os investidores tiverem de ser reembolsados.

O Plano Anual de Financiamento também prevê que o governo tentará aumentar o prazo da DPF. No fim de 2012, o prazo médio ficou em quatro anos. O PAF estipulou que ficará entre 4,1 anos e 4,3 anos no fim de dezembro. O Tesouro divulga as estimativas em anos, não em meses. Já a parcela da dívida que vence nos próximos 12 meses encerrará o ano entre 21% e 25%. Atualmente, está em 24,4%.

O documento ressaltou ainda que o Tesouro Nacional possui dois mecanismos de segurança para assegurar a capacidade de financiamento do governo em caso de crise econômica que não permita ao Tesouro lançar títulos no mercado. Em primeiro lugar, o Tesouro tem um colchão de R$ 9,7 bilhões de compras antecipadas de dólares, suficiente para pagar 61% da dívida externa a vencer até 2015. Além disso, o governo tem reservas em caixa para cobrir cerca de cinco meses de vencimentos da DPF.

Por meio da dívida pública, o Tesouro Nacional emite títulos e pega dinheiro emprestado dos investidores para honrar compromissos. Em troca, o governo compromete-se a devolver os recursos com alguma correção, que pode seguir a taxa Selic, a inflação, o câmbio ou ser prefixada.
Fonte: Br.Notícias

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Poder de consumo dos moradores de favela no país chega a R$ 56 bi por ano

A depender dos critérios adotados, no Brasil morador de rua pode ser enquadrado como classe média (Almoço das Horas).

por Flávia Villela
Publicado em 20/02/2013
  
 Apesar do enorme potencial de consumo de uma população de cerca de 12 milhões de habitantes, esse nicho de mercado ainda é pouco explorado devido ao preconceito, segundo o Data Popular (Francisco Valdean/Arquivo RdB)

Rio de Janeiro – Os moradores das favelas brasileiras consomem cerca de R$ 56 bilhões por ano, o que equivale ao Produto Interno Bruto (PIB) da vizinha Bolívia. A constatação é de pesquisa realizada pelo instituto Data Popular, em parceria com a Central Única de Favelas (Cufa) divulgada hoje (20).

De acordo com o estudo, feito a partir de entrevistas e do cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) com os da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), o consumo popular triplicou nos últimos dez anos.

No entanto, apesar do enorme potencial de consumo de uma população de cerca de 12 milhões de habitantes, esse nicho de mercado ainda é pouco explorado devido ao preconceito, segundo o diretor do Data Popular, Renato Meirelles.

“O morador de favela não quer sair da favela, ele quer capitalizar isso nas marcas que ele usa. Esse era um mercado invisível, pois estava debaixo dos nossos narizes, mas as pessoas só enxergavam a favela pela ótica da violência e do tráfico”, disse Meirelles. Segundo ele, dois terços dos moradores de favelas do país pertencem à metade mais rica do mundo.

A pesquisa revela que a classe C cresceu muito mais nas comunidades das metrópoles do que no interior do país, com alta de quase 50% na última década (de 45% para 66%), assim como a média de escolaridade, que subiu de quatro para seis anos no mesmo período.

O dono da empresa Vai Voando, Tomas Rabe, é um dos empresários que apostaram no consumidor de baixa renda e hoje não se arrepende. Com cerca de 70 lojas de vendas de passagens áreas somente em favelas, sobretudo do Rio e São Paulo, a empresa, criada há pouco mais de dois anos, tem planos de abrir mais 50 lojas este ano, apenas no Rio de Janeiro.

“Este mercado é invisível para quem não está atento”, disse o empresário. Segundo ele, menos de três anos depois, a empresa está embarcando uma média de 3 mil passageiros por mês, com 43 mil passageiros embarcados até hoje.

Rabe explicou que, uma vez rompido o preconceito, é importante entender esse público e se adequar aos hábitos de consumo e à realidade dessa população. “A maioria não usa cartão de crédito e muitos não têm nem conta em banco. Então, nossa forma de pagamento é por boleto pré-pago”, explicou ele.

Segundo o estudo, 69% dessas populações utilizam dinheiro como forma de pagamento, 9% usam cartão de crédito de terceiros e 10%, cartão de crédito próprio. Além disso, cerca de 69% dos moradores de comunidades vão ao shopping toda a semana e 50% comem fora semanalmente. Nos próximos 12 meses, 49% pretendem comprar móveis; 36% querem um novo eletrodoméstico; e 24% pretendem contratar serviços de TV por assinatura.

O empresário Elias Targilene é outro exemplo de sucesso entre os que investiram nas classes C, D e E. Com cinco shoppings populares construídos em um período de três anos, ele pretende lançar daqui a três meses o primeiro shopping do Brasil dentro de uma favela, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio.

“Não podemos mais falar que ser popular é ser feio, sujo, fedido e desorganizado. Hoje, somos uma nação rica e ser pop hoje significa ter serviço, ser bonito, atender bem”, declarou o empresário.

Drones: dossiê sobre uma guerra suja


Como EUA executam, sem julgamento, supostos “inimigos”. Por que civis são alvo. De onde partem ataques. Que precedentes programa abre

Por Cora Currier
Tradução Vila Vudu1
9/02/2013


É possível que você já tenha ouvido falar das “kill lists” – listas de nomes de pessoas a serem assassinadas. Certamente você já ouviu falar dos drones. Mas os detalhes da campanha que os EUA movem contra militantes no Paquistão, no Iêmen e na Somália – peça chave da abordagem que o governo Obama optou por dar à segurança nacional – permanecem envoltos em segredo. Aqui oferecemos um guia do que já sabemos e do que ainda não sabemos.

Onde se trava a guerra ‘dos drones’? Quem faz essa guerra?
Os aviões-robôs comandados à distância, os drones, são a arma escolhida pelo governo Obama para matar militantes fora do Iraque e do Afeganistão. Os drones não são a única arma – também há notícias de ataques aéreos tradicionais e outros. Mas segundo uma das estimativas disponíveis, em mais de 95% dos assassinatos premeditados executados depois de 11/9/2001, os alvos foram mortos por drones. Uma das vantagens dos drones é que os soldados norte-americanos fogem da linha de fogo.
O primeiro ataque noticiado contra a Al-Qaeda aconteceu no Iêmen em 2002. A CIA aumentou muito o número de ataques secretos com drones no Paquistão, durante o governo George W. Bush em 2008. E sob o governo Obama o uso foi drasticamente ampliado também no Paquistão e no Iêmen, em 2011.
Mas a CIA não é a única agência a atacar com drones. O exército também já admitiu “ação direta” no Iêmen e na Somália. Os taques nesses países são executados sempre secretamente por grupos do Comando Conjunto de Operações Especiais [orig. Joint Special Operations Command, JSOC]. A partir do 11/9, esse JSOC foi aumentado. É hoje dez vezes maior, e assumiu funções de espionagem, além das funções de combate. (Por exemplo, uma das equipes do JSOC atuou na operação que assassinou Osama Bin Laden.)
A guerra de drones é lutada por controle remoto, a partir de bases instaladas em território dos EUA e numa rede de bases secretas espalhadas por todo o mundo. O Washington Post conseguiu obter alguma informação sobre isso, examinando contratos de construção nos quais havia itens não explicados. Por exemplo, na construção da base dos EUA, numa minúscula nação africana, o Djibuti, de onde partem muitos dos ataques contra Iêmen e Somália. Antes disso, no mesmo ano, a revista Wired mapeou os atos de guerra dos EUA contra o grupo militante al-Shabaab da Somália, e a crescente presença militar dos EUA em toda a África.
O número de ataques no Paquistão caiu em anos recentes, de um máximo de 100 em 2010, para cerca de 46, ano passado. Mas o número de ataques contra o Iêmen cresceu, chegando a mais de 40 ano passado. E só nos primeiros dez dias de 2013, já houve sete ataques no Paquistão.

O jargão da guerra dos drones
AUMF [Authorization for Use of Military Force / Autorização para Uso de Força Militar] é lei do Congresso dos EUA, aprovada poucos dias depois dos ataques de 11/9, que dá ao presidente autoridade para “usar toda a força necessária e apropriada” contra qualquer pessoa ou grupo envolvido naqueles ataques ou que tenha dado abrigo a alguém neles envolvido. Ambos, Bush e Obama exigiram para si amplos poderes para deter e matar suspeitos de terrorismos, baseados nessa AUMF.
AQAP [Al-Qaeda in the Arabian Peninsula / Al-Qaeda na Península Arábica] é o grupo afiliado à al-Qaeda que tem base no Iêmen, responsabilizado pelo atentado a bomba contra um avião no Dia de Natal de 2009. Ao longo do ano passado, os EUA aumentaram o número de ataques com drones contra a AQAP, nos quais foram assassinados líderes do grupo e outras pessoas que não foram identificadas como militantes.
DISPOSITION MATRIX [Matriz de alvos a serem dispostos (mortos)] É um sistema para rastrear suspeitos de práticas de atos de terrorismo e para classificá-los, com registro de onde possam ser assassinados (ou capturados). O jornal Washington Post noticiou nesse outono [nórdico] que o sistema “Disposition Matrix” é uma tentativa de codificar, em listas nas quais os alvos são dispostos conforme sua importância relativa, para serem assassinados. Essas listas são as chamadas “kill lists” [listas para matar] dos esquadrões oficiais da morte dos EUA.
GLOMAR A expressão designa a resposta a um tipo de pedido de informação sobre programa secreto, cuja existência não possa ser nem confirmada nem negada. A palavra foi usada pela primeira vez em 1968, quando a CIA disse a jornalistas que não podia “nem confirmar nem negar” a existência [de um navio chamado] “Glomar Explorer”. Hoje, a CIA tem respondido a quem procure informação sobre seu programa de drones com “respostas GLOMAR”.
JSOC [Joint Special Operations Command / Comando Conjunto de Operações Especiais] é segmento militar altamente secreto. É o grupo que executou o assassinato de Bin Laden e, hoje conduz o programa dos drones militares no Iêmen e na Somália. Trabalham tb na coleta de inteligência.
PERSONALITY STRIKE [Ataque ‘personalidade’] Designa o ataque a um indivíduo identificado como líder terrorista.
SIGNATURE STRIKE [Ataque ‘assinatura’] Designa o ataque contra algum suspeito de ter atividade política militante, mesmo que sua identidade seja desconhecida. Esses ataques baseiam-se na análise de um “padrão de vida” – informação que a inteligência reúna sobre comportamentos que façam pensar que um indivíduo seja militante político. Esse tipo de ataque, que Bush inaugurou no Paquistão, já é autorizado hoje também no Iêmen.
TADS [Terror Attack Disruption Strikes / (aprox.) Ataques para interromper ação terrorista], expressão usada às vezes em referência a ataques nos quais não se conhece a identidade do alvo a ser assassinado. Funcionários do governo Obama têm dito que os critérios para os TADS são diferentes dos critérios para os Ataques ‘assinatura’, mas nem uns nem outros foram jamais claramente explicados.
Como se definem as vítimas a serem assassinadas?
Vários artigos (1, 2 e 3) baseados, na maior parte, em comentários feitos por funcionários não identificados permitem conhecer, pelo menos, um quadro parcial de como os EUA selecionam seus alvos para assassinatos políticos predefinidos. Dois relatórios recentemente publicados – de pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade Columbia e do Conselho de Relações Exteriores –  também oferecem considerações detalhadas sobre o que se sabe de todo esse processo.
Sabe-se que a CIA e os militares mantiveram, por muito tempo, ‘listas de matar’ que se sobrepunham. Segundo relatos de noticiários da primavera passada, as listas dos militares atropelou as demais nas reuniões comandadas pelo Pentágono, cabendo à Casa Branca a decisão final. Missões particularmente ‘sensíveis’ têm de ser autorizadas pessoalmente pelo presidente Obama.
Esse ano, o processo mudou, ao que se sabe, para concentrar a análise dos indivíduos-alvos e os critérios gerais para os assassinatos premeditados, na Casa Branca. Segundo o Washington Post, as análises são feitas agora em reuniões regulares entre as várias agências, no Centro Nacional para Contraterrorismo. Enviam-se recomendações para um seminário permanente de oficiais do Conselho de Segurança Nacional. E as decisões finais são levadas pelo Conselheiro para Contraterrorismo da Casa Branca, John Brennan, diretamente ao presidente. Vários estudos têm mostrado o importante e controverso papel de Brennan na modelagem de toda a trajetória do programa de assassinatos premeditados. Essa semana, Obama nomeou Brennan para dirigir a CIA.
Pelo menos alguns ataques da CIA não tem de esperar pelo sinal verde da Casa Branca. O diretor da CIA tem autonomia, ao que se sabe, para autorizar assassinatos premeditados no Paquistão. Numa entrevista em 2011, John Rizzo, ex-advogado chefe da CIA, disse que os advogados da agência analisavam detalhadamente cada ‘alvo’.
Segundo o Washington Post, o recente esforço do governo Obama para impor limites mais bem definidos às listas para matar e aos “assassinatos assinatura” não inclui a campanha da CIA no Paquistão. A CIA ganhou mais, no mínimo, um ano, para prosseguir na campanha de assassinatos premeditados no Paquistão segundo, exclusivamente, os próprios protocolos.

Os EUA assassinam pessoas cujos nomes nem sabem?!
Sim. Por mais que funcionários do governo apresentem os ataques de drones como limitados a “líderes de alto nível da al-Qaeda que planejem ataques” contra os EUA, muitas vezes o que se vê são ataques contra ‘possíveis’ militantes cujas identidades os EUA absolutamente não conhecem. Os chamados “Ataques ‘assinatura’” começaram com Bush, no início de 2008; com Obama foram muito expandidos. Não se sabe exatamente quantos dos ataques são “ataques ‘assinatura’”.
Em mais de uma ocasião, os “ataques ‘assinaturas’” perpetrados pela CIA, sobretudo no Paquistão, causaram tensões com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Um funcionário contou ao New York Times sobre piada que circularia, segundo a qual, para a CIA, “três sujeitos fazendo polichinelos” são campo de treinamento de terroristas.
No Iêmen e na Somália, discute-se se os militantes que os EUA tomam por alvos estão de fato tramando contra os EUA ou se, diferente disso, estariam tramando contra o próprio país deles. Micah Zenko, membro do Conselho de Relações Exteriores que muito criticou o programa dos drones, disse em entrevista à rede ProPublica que os EUA, de fato, estão mantendo uma “força aérea contraguerrilhas” para servir aos países aliados. Não raras vezes, os ataques foram organizados a partir de inteligência local que, adiante, se comprovou errada ou insuficiente. O Los Angeles Times examinou recentemente o caso do iemenita que foi assassinado por um drone norte-americano e a complexa rede de laços e contatos políticos que cercou o caso.

Quantos já foram mortos em ataques de drones?
Ninguém conhece o número exato, mas há estimativas que falam de cerca de 3 mil mortos. Vários grupos rastreiam os ataques de drones e estimam o número de vítimas:
– O Long War Journal cobre o Paquistão e o Iêmen.
– O New America Foundation cobre o Paquistão.
– O London Bureau of Investigative Journalism cobre Iêmen, Somália, e Paquistão, e oferece estatísticas sobre ataques com drones também no Afeganistão.

Quantos dos mortos eram civis?
Impossível saber. Os números variam muito, para mais e para menos. A New America Foundation, por exemplo, estima que entre 261 e 305 civis foram mortos no Paquistão; o Bureau of Investigative Journalism fala de 475 a 891 mortos. Todas essas estimativas são sempre superiores ao número de mortos que o governo divulga. (Há discrepâncias até entre os que oferecem as menores estimativas.)  Algumas análises mostram que o número de civis mortos diminuiu em anos recentes. (…) E o Washington Post noticiou mês passado que o governo do Iêmen frequentemente oculta ou tenta ocultar o papel dosdrones dos EUA em eventos nos quais morram civis.)
Os números são imprecisos também porque os EUA com frequência contabilizam qualquer homem em idade de prestar serviço militar, que morra em ataque de drones, como “militante terrorista”. Um funcionário do governo Obama disse à nossa rede ProPublica que “Se um grupo de homens em idade de combater está em local onde sabemos que estão construindo explosivos ou planejando ataques, assumimos que todos os ali reunidos participam do mesmo esforço.” Não se tem notícia de resultados de investigação, nem se há qualquer investigação, depois de consumado o ataque.
A Faculdade de Direito da Universidade Columbia elaborou análise em profundidade de tudo que se sabe sobre esforços dos EUA para mitigar e calcular o número de baixas entre civis. Concluiu que o caráter clandestino da guerra dos drones dificulta, quando não impede completamente as práticas de prestação pública de contas que se adotam nas ações militares tradicionais. Outro estudo de Stanford e da New York University, comprovou “ansiedade e trauma psicológico” entre habitantes de vilas paquistanesas.
Esse outono, a ONU anunciou uma investigação sobre o impacto nas populações civis – especialmente sobre acusações de “ataques duplos“ [orig. double-tap], casos em que ocorre um segundo ataque, que toma por alvos os que venham à cena do primeiro ataque para socorrer feridos.

Por que matar primeiro? Por que não se cogita de capturar suspeitos?
Funcionários do governo Obama têm dito em declarações que os militantes são tomados como alvos de execução quando representem ameaça iminente ao EUA e a captura não seja exequível. Mas a execuções em ataques de drones são muito mais frequentes que eventos de prisão de suspeitos; e os relatórios dos ataques pouco ou nada esclarecem sobre “ameaça iminente” ou “exequibilidade” de prisões. Casos que envolvam captura secreta de prisioneiros, em conflitos em área remotas, durante o governo Obama mostram as dificuldades políticas e diplomáticas que se criam para que se decida como e onde um suspeito possa ser detido ou preso.
Esse outono, o Washington Post descreveu algo denominado “disposition matrix [Matriz de alvos a serem dispostos (mortos)] – processo que oferece planos de contingência para o que fazer com terroristas, conforme o local onde estejam. The Atlantic mapeou o modo como se tomam decisões, no caso de o ‘suspeito’ ser cidadão norte-americano, baseado em alguns exemplos conhecidos. Mas, evidentemente, os detalhes dessa “matriz de alvos a serem mortos [dispostos]”, bem como as “listas de matar” a que dão origem, não são conhecidos.

Qual o fundamento que dá amparo legal a esses esquadrões da morte oficiais?
Funcionários do governo Obama têm feito várias declarações e discursos nos quais muito falam da fundamentação legal em que se baseariam os assassinatos predefinidos, mas jamais citam qualquer caso específico. De fato, ninguém reconhece oficialmente a existência da guerra de drones. Os programas de drones para assassinatos premeditados pode incluir indivíduos associados à al-Qaeda ou “forças associadas”, também fora do Afeganistão e, até, cidadãos norte-americanos.
“O devido processo legal, disse o Procurador Geral dos EUA Eric Holder, em discurso em março passado, “toma em consideração as realidades do combate”. Em que consiste esse “devido processo legal”, não se sabe. E, como já noticiamos, o governo dos EUA frequentemente se fecha  para comentários de qualquer tipo e para questões específicas – como o número de civis mortos ou os motivos específicos pelos quais um ou outro indivíduo tenha sido considerado ‘alvo preferencial’ para assassinato premeditado, ou por que a captura foi considerada ‘não exequível’ (como se vê em memorando do Departamento de Justiça, não secreto, ao qual teve acesso a rede NBC). (…)

Quando terminará a guerra dos drones?
O governo dos EUA, dizem alguns noticiários, já teria considerado a desescalada da guerra dos drones, mas, segundo outras fontes, estaria trabalhando para formalizar o programa de assassinatos premeditados, que seria convertido em programa de longa duração. Os EUA avaliam que a Al-Qaeda na Península Arábica conte hoje com “uns poucos milhares” de membros; mas há oficiais que também dizem que os EUA “não podem capturar ou assassinar todos os terroristas que se declarem ‘ligados’ à al-Qaeda.”
Jeh Johnson, que acaba de deixar o posto de conselheiro geral do Pentágono, fez uma palestra, mês passado, sob o título de “The Conflict Against Al Qaeda and its Affiliates: How Will It End?” [O conflito contra a al-Qaeda e seus afiliados: como acabará?]. Mas não marcou data.
John Brennan disse que a CIA deve voltar a concentrar-se no trabalho de coletar inteligência. Mas o papel principal de Brennan no comando da guerra dos drones a partir da Casa Branca já levantou o debate sobre o quanto sua indicação para dirigir a CIA servirá para ocultar ainda mais o envolvimento da agência, se vier a ser confirmado no posto.

E quanto a volta do chicote dos drones – e o antiamericanismo –, em todo o mundo?
Disso, sim, há muito, em todo o mundo. Os drones são cada vez mais profundamente impopulares nos países onde são empregados, e continuam a provocar protestos frequentes. Apesar disso, Brennan disse em agosto passado que os EUA veem “poucos sinais de que a ação dos drones esteja gerando sentimentos antiamericanos, ou facilitando o recrutamento de terroristas”.
O general Stanley McChrystal, que comandou os militares no Afeganistão, contrariou recentemente essa ideia: “O ressentimento criado por os EUA usarmos os veículos não tripulados como arma de ataque (…) é muito maior do que supõem os americanos médios. Os drones são visceralmente odiados, até por gente que jamais viu um drone ou conheceu os efeitos da ação de um deles.” O New York Times noticiou recentemente que militantes paquistaneses haviam deflagrado campanha brutal contra locais acusados de espionagem a favor dos EUA.
Quanto a governos estrangeiros, a maioria dos principais aliados dos EUA mantêm silêncio sepulcral sobre os drones. Relatório da ONU, de 2010, já levantara preocupações sobre o precedente que se criava, de guerra clandestina, sem leis e sem qualquer limite. O presidente do Iêmen, Abdu Hadi, apoia a campanha dos drones norte-americanos; e o governo do Paquistão mantém uma inconfortável combinação de protestos para efeito público com aceitação oficial muda.
Fonte original: Pro Publica
Publicação em português: Outras Palavras